quinta-feira, outubro 02, 2008

Dramaturgia


Aquilo que falta por cá, embora já tenhamos estado bem piores em períodos de longas pasmaceiras cénicas, faz com que estejamos sempre bem atentos a qualquer 'movimentação' nesse espaço - a dramaturgia. Pela pena da Jornalista Otília Leitão, in asemana-on-line, chega-nos esta 'lufada de ar fresco'. Um dramaturgo caboverdiano, com 'canudo' e tudo: Armindo Tavares.

É claro que queremos saber mais. Tudo!

Com a devida vénia...


Postal de Lisboa

Numa Juventude marcada por desafectos, Armindo Tavares nunca tinha lido um jornal até aos 22 anos. Hoje é, aos 48 anos, o primeiro cabo-verdiano a obter uma licenciatura em “Dramaturgia” na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e, publicado o seu ensaio “As Aventuras de Nhu Lobo”, prepara-se para lançar o mesmo em DVD animado. Na mão tem mais de 20 peças prontas a publicar, classificadas por “tragédias”, “comédias”, “tragicomédias”, “melodramas” e “dramas”, além de cinco obras de autores estrangeiros traduzidos em crioulo. Por: Otilia Leitão
Da janela do pequeno escritório na sua casa na Amadora, frente a um jardim verdejante, numa manhã solarenga que Armindo Martins Tavares, comparou com o calor cabo-verdiano, o autor fala-me ainda da compilação de estórias de Nhu Lobo deixadas para publicação, em 2005, no Instituto Nacional da Biblioteca e do Livro em Cabo Verde, que aguarda ainda qualquer resposta, um direito ao “sim” ou ao “não”, porque o silêncio esconde cumplicidades subjectivas.
Nas paredes da sua sala estão fotos de familiares, sobretudo dos seus filhos mas não dos seus progenitores. O desafecto do seu pai que lhe vedou o acesso ao conhecimento e lhe infligiu violências físicas e psicológicas está ostensivamente presente neste homem que já apresentou “Aventuras de Nhu Lobo” (teatro) na sua própria terra, Santa Cruz, ilha de Santiago, mas de “sala vazia”. Porquê? Perguntei-lhe, ao mesmo tempo que lhe acrescentei a metáfora da cobra que corria, corria, atrás de um pirilampo saltitante, para o matar, sem motivo... apenas porque o seu excessivo brilho a incomodava...
Armindo sublima esse facto, até porque apresentou esse ensaio, de capa ilustrada com um desenho de sua filha de onze anos, este Verão na capital cabo-verdiana, na exposição “Lusofonias, Culturas em Comunidade” no Palácio Cabral em Lisboa e este fim de semana, na Câmara Municipal da Amadora. É decididamente um homem do Teatro, que tem deferências com o actor, médico e dramaturgo, fundador do tradicional grupo ” Korda Kaoberdi, Francisco Fragoso.
Esta sua paixão desabrochou na idade madura, depois de um percurso a tentar encontrar um caminho para a sua vida, por si trabalhada, sem os pilares familiares que o harmonioso desenvolvimento humano necessita. Nasceu em Chã de Nispre. Só aos 9 anos se matriculou na escola primária. Andou 53 quilómetros a pé para fazer o exame da quarta classe e teve que vender umas calças jardineiras para pagar a matrícula do ensino secundário, em 1974. Tudo de forma intermitente entre “lambadas e palavras rancorosas” de um pai que tem quarenta filhos. No seu livro lê-se: no dia 7 de Outubro de 1974, véspera do início do ano lectivo na Praia, de sacola às costas e pronto para sair ouviu do pai: “Aonde é que o senhor vai? (palavra que significava a ausência de respeito ou estima). “Vou à Praia, as aulas começam amanhã”, explicou - “Vai mas é lá posar o saco. Tu é que mandas?” Armindo Tavares só fez o 1º ano, sete anos mais tarde, em 1982, já desmobilizado do serviço militar.
Depois do trabalho em notariado nas ilhas do Fogo, Brava e Praia e já com o 7º ano concluído, Armindo juntou-se a sua mãe, Ilda Mendes, a “Zita”, mulher, mãe de oito filhos, que emigrou de Cabo Verde, sozinha, para a Pedreira dos Húngaros, em Oeiras, um bairro de barracas de lata e cartão, hoje substituído por habitações sociais de alvenaria.
Depois, foi o trabalho temporário, às vezes precário, na construção civil, recepcionista, segurança, animador cultural, ao mesmo tempo que corria para as aulas nocturnas de Direito na Universidade Lusíada (1996), numa altura em que auferia um salário de 40 contos (200 euros) e a propina era 150 contos. Cursou outras ferramentas como Informática, Análise e Programação em (2001), Licenciatura em Dramaturgia (2006), Técnico de Produção Multimédia (2008).
Homem desempoeirado e de verbo fluente, que dá aulas e consultadoria documental, Armindo Tavares revela uma irreverência que não se conforma com respostas ambíguas. “Para me contrariarem o argumento, têm de dar-me uma explicação alternativa, coerente...”, justifica, admitindo que o inconformismo que o faz denunciar prepotências da polícia, incompetências de funcionários, atitudes de xenofobia ou má educação, o apelidam de “confuzento” (conflituoso), mas em meu entender é apenas uma pessoa que gosta de verdade e justiça e apenas pretende exercer os seus direitos consagrados na Constituição e demais documentos internacionais. Um dia perdeu o seu voo de Lisboa para Cabo Verde, porque ousou contestar uma informação incorrecta...a polícia quis ver-lhe todos os documentos...
Afinal, Armindo Tavares, o menino “de asas cortadas” a cavar a terra, mas que queria voar alto - tradutor para crioulo de obras de Tchekov, Alfred Jarry, Carlo Goldoni e Samoel Beckt, autor de tantas dramaturgias e de outras literaturas como o dicionário de crioulo/português (variante de Santiago) por publicar - confidenciou-me que as dezenas de ensaios que possui, escreveu-os antes de fazer o seu curso de teatro. “Hoje sei o que desconhecia! Aquilo que escrevia... já era teatro!”
otilia.leitao@gmail.com

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