E porque esta sexta-feira, 07 de Março, teremos da Colecção Dramaturgia Nacional, o segundo volume com peças de Mário Lúcio Sousa… propomos hoje aqui no Teatrakácia, repôr uma entrevista concedida pelo autor, justamente sobre essas andanças de experimentar escrever para o Teatro.
«A dramaturgia é o único espelho literário que existe.»
Pergunta: Para início de conversa gostaríamos que nos dissesse qual a sensação que fica depois da experiência que teve na qualidade de escritor na área da dramaturgia, a ver a sua obra no palco.
Mário Lúcio: A nível da expressão literária foi para mim uma experiência nova e só se me comparou a quando se assiste ao nascimento de um filho. Foi exactamente a mesma impressão na medida em que a pessoa escreve – ou concebe – e depois vê toda essa pretensão ou desígnio convertida em vida.
P: Com a encenação.
Mário Lúcio: Precisamente, com a encenação. Portanto o texto escrito é uma imaginação, uma viagem para um universo de todo o modo abstracto, e de repente nós vemos as pessoas, as personagens, os espaços a nascerem dessa imaginação e a tomarem corpo e dinâmica próprios. Às vezes nos sentimos também surpreendidos, é como se esse processo fosse algo desgarrado da nossa criação original.
P: E poder-se-á dizer que é um pai, desses cuidadosos, que acompanham todo o processo?
Mário Lúcio: Eu tive a sorte de trabalhar com o João Branco e com uma excelente equipa, e eles permitiram-me desfrutar de experiências e situações artísticas que não faziam parte do meu horizonte, das minhas aspirações. Uma grande experiência para mim foi ter assistido ao casting, à escolha dos actores, e o João consultava-me e estivemos quase perto de estarmos praticamente em consenso. Também houve outras situações muito interessantes, como quando assisti o início dos ensaios e também ao ensaio para a imprensa, ainda sem público, dois ou três dias antes da estreia. E todo esse processo foi como realmente anunciar uma gravidez e depois termos essa possibilidade de acariciar todo esse processo de gestação até ver junto com o mundo essa entrega à luz, que é uma expressão que até cai bem ao teatro...
P: No caso concreto de “Adão e as Sete Pretas de Fuligem” acha que esse filho, o Adão, parece-se consigo ou com a mãe?
Mário Lúcio: Acho que tem das duas coisas. A concepção é importante mas o João tem uma forma muito própria de interpretar os textos e essa forma vai permitir, agora que nos conhecemos melhor, e ainda dentro dessa metáfora, de celebrar o matrimónio, porque agora já tenho outras preocupações. Por exemplo, antes eu tinha que fazer imensas descrições dos cenários, das movimentações dos personagens, e agora posso ocupar-me melhor com o enquadramento dos diálogos. O João encontra soluções estéticas muito elevadas para os textos, que no papel tem todo o cabimento, mas no palco não pode haver situações forçadas. Ele tem soluções que não estão previstas no texto, essa é a sua forma de trabalhar. Ele mais do que aplicar um texto, respeitando as palavras todas e as ideias todas, cria situações que complementam a interpretação desses textos. De forma que Adão tem muito do pai porque respeita toda a fisionomia, mas no comportamento, pode-se dizer que é um filho da mãe (risos).
P: Deve-se entender que houve momentos de alguma cedência da parte do pai...
Mário Lúcio: Exacto. Mas foi natural, pois eu sempre trabalhei em grupos. Enquadro-me bem em trabalhos de grupo. Eu vivi desde miúdo num quartel militar, fiz toda a minha carreira universitária em Cuba, onde vivíamos várias pessoas no mesmo apartamento, com toda aquela educação comunitária e depois entrei no Simentera, ou seja, sempre partilhei os meus conhecimentos e os meus sentimentos com um grupo. O texto inicial era um texto muito longo, pois eu tinha-me proposto fazer uma leitura da exclusão no seu sentido mais amplo, até à auto-exclusão, mas também queria falar de uma coisa que acontece muito hoje em dia que é a exclusão política, e que é muito violenta. Isto é, os políticos servem-se uns aos outros e estão todos dentro do mesmo saco. Quando se discorda, aquele que foi bom ontem é uma víbora amanhã. Isso em África é muito comum. Eu quis tratar todo o processo das ex-colónias, onde houve muita exclusão, sobretudo em Angola, e então o texto original era muito longo, daria para cerca de duas horas e meia de teatro. O João sugeriu-me que havia um momento alto na peça e que gostaria que o final fosse ali, e então o texto ficou, poderá haver outros encenadores que queiram trabalhá-lo. Foi só uma forma de trabalhar em conjunto e eu prontifiquei-me em trabalhar a escrita para um final específico, que ele sugeriu. E foi muito bom, porque foi um momento muito criativo para mim, substanciado na cena final dos santos, que me deu imenso gozo artístico, entrar nesse mundo e aprender muito com isso. Depois o final acabou por ser mesmo uma escrita minha, mas a partir de uma proposta do resto do grupo.
P: Portanto a sua própria vida deu-lhe um trunfo que o ajudou a entrar no mundo do teatro, que é um mundo do colectivo.
Mário Lúcio: Sim. Foi uma experiência muito gratificante a vários níveis, até porque normalmente a criação é um acto solitário. E todo o meu processo de criação tem sido um acto solitário embora na hora da execução e da experimentação venha a ser um processo de discussão, de partilha. Mas com o teatro, neste caso específico, directamente ligado a métodos do encenador, deu-me a possibilidade de me sentir um escritor de marionetas, que também as houve no espectáculo. Eu sentia que os actores também eram meus, eu tinha ajudado a criá-los...
P: Podia manuseá-los...
Mário Lúcio: Exacto. Isto deu-me vários amigos, várias paixões. Ainda hoje tenho uma enorme paixão por essa obra, pelo encenador e pelos actores. Passaram a fazer parte da minha vida, porque foi um momento muito importante de encontro de seres humanos.
P: Temos estado a falar mais do período pós produção, gostaríamos de saber no que diz respeito concretamente à parte da criação, à parte solitária, como disse, se foi também gratificante, ou havia mais a preocupação do compromisso assumido?
Mário Lúcio: Foram as duas coisas, na medida que eu nunca trabalhei sob encomenda. Mesmo no caso do Sementera, gravámos de dois em dois anos porque tenho a preocupação de deixar que as músicas nasçam. Na minha estrutura mental os prazos tem alguma importância, porque incitam-me, vão provocando ideias. E quando recebi esse convite do Porto 2001, e o João telefonou-me e falou comigo, eu respondi, porque gosto desse tipo de colaborações, mas também queria aceitar esse desafio. Não era só um desafio de compromisso, mas de escrever um texto para ser encenado e mais do que isso, ir ao encontro de um tema que me foi proposto. Também gosto de trabalhar nesse sentido, compor para filmes, por exemplo. Fiz a banda sonora de “Adão e as Sete Pretas de Fuligem” porque é bonito nós irmos de encontro às aspirações do outro. E eu aceitei, e comecei a pensar no que é que se poderia fazer. Foram vários meses de reflexão, geralmente à noite, um sono acordado que origina um cansaço terrível, e surgiram várias ideias nesse período. Pensei em vários cenários. Por exemplo, que poderiam ser sete mortos, o que era uma coisa engraçada, porque começava a meio metro do piso do palco, portanto toda a encenação seria subterrânea e os mortos levantavam-se e contavam em perspectiva o que lhes tinha sucedido na vida. E aí havia várias diferenças, diversidade humana, diversidade de vivências. Mas acabei por mudar de ideias porque era um cenário um tanto ao quanto macabro, embora fosse certo que o João daria àquilo toda a comicidade merecida, mas a mim o caixão é algo que me choca, e desisti da ideia, porque esse simbolismo poderia também afectar a sensibilidade de outras pessoas. Foi assim que surgiu a ideia da parábola da Branca de Neve e os Sete Anões.
P: Ainda um pouco mais sobre a parte criativa, essa parte de pensar nos personagens, criar para o teatro, o escritor nessa outra expressão, que é a dramaturgia. Fica-lhe a vontade de repetir essa experiência?
Mário Lúcio: Sim, hoje em dia sim. Até porque já sei minimamente navegar e sobretudo quando se trabalha em parceria com um encenador desde o princípio. Eu confesso que tinha uma ideia da obra, escrevi a sinopse, eu e o João falámos muito, em cafés e noutros locais, e foi-me dando ideias. Mas chegámos a um ponto que foi também de sofrimento, quando eu não tinha soluções técnicas para trazer o personagem à cena. Havia desembarques de personagens em Lisboa, chegadas de barco ao país de origem, discussões numa praça, uma discoteca, havia desfiles militares, cenas antes da independência, cenas dezoito anos depois...
P: Resumindo, o criador não deve pensar na encenação...
Mário Lúcio: Eu como já tinha o hábito de escrever guiões para documentários e espectáculos, procurei seguir essa linha, mas foi um processo de sofrimento. Só depois me apercebi que realmente essas soluções técnicas cabiam ao encenador, mas eu continuo a trabalhar assim, a sugerir, porque senão complico a vida ao encenador e também porque não saberia enquadrar exactamente o que eu quero. Daí que às vezes propunha soluções desse tipo, que fazem parte mais do texto do que da encenação, mas onde certos elementos da encenação entram como elementos plásticos do texto.
P: Esse relacionamento com o encenador, para o escritor, é uma facilidade.
Mário Lúcio: Exactamente. Para mim constitui uma enorme facilidade porque eu não gosto de complicar as coisas. Assim sei que o trabalho vai numa linha e que essa linha permite-me uma enorme aprendizagem, isto é fundamental, porque é uma matéria que eu não domino, e também essa minha aprendizagem vai facilitar posteriormente a encenação da obra. Então é todo um processo de partilha, onde eu funciono também como aprendiz.
P: Tecnicamente falando, a dramaturgia é algo bem diferente do resto que se possa escrever. Que comentários?
Mário Lúcio: Para mim foi muito diferente, porque na minha prosa eu não gosto de escrever diálogos, travessões e parágrafos. Comecei na literatura pela poesia, que continuo a produzir, depois escrevi um livro de prosa, que acho que teve algum papel nesse convite que me fizeram, mas é um texto que não tem travessões, não tem diálogos sistemáticos, eles estão narrados, como eu gosto de escrever. E de repente na dramaturgia temos que estar permanentemente a fazer ponto parágrafo travessão, ponto parágrafo travessão. Incomoda-me muito. Não nos permite muitas loucuras, porque as personagens não habitam dentro de nós no teatro, como acontece nos outros géneros. No teatro nós temos que ser actores, isto é, os vários personagens são fingimentos de mim. E então é possível também entrar em contradições comigo. Aliás, acho que a dramaturgia é o único espelho literário que existe e mostra-nos que cada homem é vários homens. E isso aconteceu-me. Tive que aceitar ser mulher, mais do que a metade que naturalmente sou, tive que aceitar ser bruxo, aceitar ser meio homem, que todos nós somos, e tive que aceitar ser o despistado, o racista, o ditador, o machista, que são coisas que nos habitam e a escola nos ensina a camuflar, mas no processo literário como é o teatro, onde nós temos que ser esses personagens, aí não há nada a esconder. E então foi esse processo, primeiro em termos técnicos e estéticos de aceitar permanentemente fazer cortes para que os personagens pudessem falar, mas também aceitar que não estava a criar personagens para me servir, como é o caso da poesia ou da prosa, mas que realmente eu estava a deitar fora as várias personagens que me habitam. E isso foi uma grande aprendizagem e tive que aceitar que nós somos esse aglomerado de coisas, incongruentes, às vezes.
P: Em “Adão...”, a exclusão era o tema. Sabemos que neste momento há uma outra experiência em curso...
Mário Lúcio: Sim. Quando eu me encontrei com o João Branco no Porto, nós falamos muito, até porque tanto ele como a Ana Cordeiro gostaram muito do texto. Aliás confesso que quando o enviei, não fazia ideia de coisa nenhuma que se iria passar, porque nem eu mesmo gostava do texto, não sabia muito bem o que tinha escrito, não sabia se iria servir. Mas eles gostaram. Depois a Isabel Alves Costa do Porto 2001 também gostou e nas conversas fui explicando porquê é que criei as várias personagens femininas. E umas das personagens é a cabeleireira. E sempre considerei que o local mais democrático do mundo, pelo menos aqui em Cabo Verde, é um salão de cabeleireiro, onde vão todas as pessoas e todas tem direito de falar e de especular e de dizer aquilo que querem. É o sítio onde nada se esconde, diz-se tudo, sabe-se tudo e aquilo que não se sabe inventa-se, e o mais terrível é que a invenção acaba por coincidir com algum facto. E o João disse, olha curiosamente, eu tenho um sonho de fazer uma peça que se passe dentro de um salão de cabeleireiro... (risos)
P: Foi um prelúdio...
Mário Lúcio: Pois, e eu disse-lhe, então está escrito. Fomos desenvolvendo ideias e eu deixo as coisas cozinharem até que esse fenómeno que se chama limite do tempo comece a provocar uma adrenalina e eu pus-me o compromisso de até Novembro ter pronta uma sinopse, durante a digressão que fiz entretanto fui tomando notas para encontrar uma solução estética para o que eu cria narrar, e apresentei ao João a ideia geral dessa nossa obra que se chamará “Salon”...
P: Salon di cabeleireiro...
Mário Lúcio: Exacto e há esse jogo de palavras que nos faz associar essa palavra aos salões do Western, porque realmente é um sítio onde acontece todo o tipo de situações. Já estamos em fase avançada. Dentro de alguns dias vou começar a escrita integral do texto.
Entrevista de Fonseca Soares, publicada no nº9 da Revista Mindelact, em 2002.